Atlas das angústias delicadas
Há mapas que nascem para guiar.
Este, nasceu para abrigar.
Em um continente sem nome, escavado por lágrimas discretas e silêncios estalando como vidro velho, surgiu este atlas.
Não há coordenadas exatas.
Aqui, o norte é uma saudade que falta, e o sul é o peso de existir com dificuldade.
Cada território foi desenhado com a ponta gasta de uma esperança —
os traços são tremores, os limites, sussurros.
Reinos, becos, estações e florestas foram erguidos com palavras que evaporaram, móveis em greve, roupas que não querem vestir, e sentimentos que se recusam a bater ponto.
Este atlas não é para se localizar.
É para se perder com dignidade.
Ao abrir suas páginas, o leitor entra num universo torto onde a dor tem arquitetura e o absurdo constrói beleza.
Os poemas aqui presentes não pedem cura.
Pedem escuta.
Reino da Solidão Translúcida
1. o guarda-chuva do avesso
no varal da varanda,
pendurei o coração entre duas meias furadas.
chovia silêncio,
e o guarda-chuva se abriu do lado errado
como quem quer proteger o chão da própria ausência.
2. mesa para um
a toalha tem saudade de migalhas.
o copo se oferece ao vazio com dignidade.
há uma colher que dorme entre os talheres,
como se sonhar fosse melhor que ser útil.
e no centro da mesa:
um prato raso carregando o peso de conversas que não chegaram.
3. a lágrima do abajur
a noite derramou dúvidas pelo tapete.
o abajur tentou consolar a escuridão
com luz trêmula e silêncio de lâmpada velha.
quando apagou,
ninguém viu que chorava —
exceto a tomada, que ficou orgulhosa de sentir algo.
Distrito dos Dias Dobráveis
1. a terça que se fez domingo
acordei dentro de uma terça-feira
vestida de domingo — lenta, envergonhada.
o sol, em greve,
fez sombra até nos minutos.
cada hora escorregava como sabão
nas mãos de um tempo que não queria mais ser útil.
2. dobraduras do agora
o agora se dobrou em quatro,
virou avião de papel e voou
pra dentro de um armário com roupas do passado.
o presente tem vergonha de se apresentar
quando o futuro só quer fazer figuração.
3. relógio com vertigem
meu despertador gira em espiral,
os ponteiros tropeçam em segundos bêbados.
há dias que passam olhando para trás,
e noites que se fingem tarde
pra não incomodar o sono da esperança.
Província dos Sonhos Corrompidos
1. sonho com prazo de validade
dormir virou esporte de alto risco:
cada sonho expira em três suspiros.
acordei com uma vontade vencida
e um desejo amassado na cabeceira.
nem o travesseiro quis lembrar
o que eu pedi ao inconsciente.
2. encomenda extraviada
solicitei um futuro com frete grátis,
veio uma caixa vazia e o bilhete:
“destino não encontrado”.
reclamei com as estrelas,
elas me pediram desculpas
em linguagem de constelação indecifrável.
3. vazamento de promessas
há um teto com goteiras de expectativa.
todo dia escorre um “talvez” pelo rodapé.
as promessas pingam devagar,
viram poças de frustração.
e eu, com balde em mãos,
coleciono esperas que nunca encheram.
Beco do Corpo Ausente
1. o armário que não me veste
abri o armário e todas as roupas
tinham aversão ao meu contorno.
a camiseta se encolheu de medo,
o casaco me julgou em silêncio.
então vesti a cortina —
ela pelo menos me cobria sem rancor.
2. o mundo como móvel pesado
a porta me olhou como móvel empacado.
a rua estava em desacordo com meus passos,
e cada esquina exigia credenciais emocionais.
meus joelhos se recusaram a negociar,
então sentei na borda do dia
até que a noite me aceitasse como mobília.
3. cartaz de “proibido ser”
na vitrine da cidade, havia um cartaz:
“entrada proibida a corpos em desequilíbrio”.
meu coração tentou disfarçar o tropeço,
mas a calçada já tinha visto tudo.
fiquei ali, do lado de fora,
tentando ser silêncio
pra não ferir o cenário.
Estação das Palavras Evaporadas
1. carta nunca enviada
escrevi uma carta em papel de lágrima.
dobrei com cuidado pra não rasgar o silêncio.
mas o destinatário era um nome que esqueci
depois que ele me calou com um olhar.
a carta ainda existe —
mora num bolso que não uso
com medo de sentir.
2. o caderno que não fala
tenho um caderno com frases pela metade.
cada vírgula é uma hesitação,
cada ponto final se arrepende do que encerrou.
as páginas se recusam a virar,
como se quisessem eternizar
o gesto tímido de não dizer.
3. dicionário em greve
procurei a palavra exata para pedir ajuda —
ela estava de folga.
tentei sinônimos desesperados,
mas todos estavam trancados no sótão do peito.
no fim, pronunciei um soluço
que ninguém traduziu.
Território das Coisas Que Desistem
1. sindicato dos objetos cansados
a escova de dentes não quer mais se levantar,
o espelho se recusa a refletir rotina.
a toalha se enrosca em si mesma,
como quem tenta se proteger de um banho forçado.
até o interruptor faz greve:
não quer acender mais nenhum dia.
2. pausa para desistência
acordei com o corpo atrasado.
a alma pediu cinco minutos a mais
e nunca mais voltou.
cada movimento é uma tentativa de continuar
sem argumento suficiente.
a vida bate ponto,
mas ninguém lê o relatório.
3. currículo de uma emoção exausta
a alegria atualizou o linkedin
com experiências que nunca viveu.
entregou um currículo com habilidades inventadas:
“sorrir sob pressão”, “fingir entusiasmo”, “ser ok”.
na entrevista, chorou.
foi contratada para se ausentar com elegância.
Epílogo – a dobra final do mapa
O atlas foi fechado, mas a cartografia continua.
Há territórios que só nascem quando o coração insiste,
e angústias que mudam de nome com o tempo.
Este documento não pretende explicar,
nem apontar saídas.
É abrigo para quem já tentou portas demais
e agora descansa no chão da metáfora:
Se o mundo não souber lidar
com a delicadeza da minha dor,
que ele pelo menos leia esse atlas
antes de me julgar perdido.
Porque estar perdido é também
uma forma de estar inteiramente presente
em si mesmo.
André Melo e Microsoft Copilot